terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Dentro de eu

Eu me sustento em mim.

Sou um apoio
Enquanto eu me apoio.

Sou uma bengala para me fazer andar.

Sou os dois,
Esqueço a dialética.

Assexuado.

Autótrofo.

Espalho meus pedaços pelo mundo
Contudo tenho um núcleo
E tenho vários núcleos dentro de mim.

Em cada célula, um ser diferente.
Mil milhões de eus diferentes dentro de eu.

sábado, 29 de novembro de 2008

Morte d'ele sem ele

Talvez o temor viesse da força e da pureza do desejo, e da punição, não pelo ato em si, mas pela fraqueza que o ameaçava mais que a qualquer outro.
Ensaiou duas, três, quatro e cinco vezes o que faria, para certificar-se de que não haveria erros durante a apresentação final. Escreveu uma carta. Bordou a letra como se fosse a última vez que escrevesse. A deixou em cima da única mesa do cômodo, aliás, do único móvel, e se preparou para por em prática tudo o que tanto treinara.
Cerrou os punhos, segurando com força o punhal. As mãos tremiam com a arma e com a alma, se estivesse em pé, com as pernas também. Uma última lágrima caiu dos seus olhos, e um vento invadiu o quarto pela janela que, até então, mantinha-se aberta.
Levantou e fechou suavemente cada folha, privando assim o espetáculo ao público.
Em seguida, voltou e sentou-se sobre a mesa, ao lado da carta. Fez então um corte profundo no pulso esquerdo, deixando o sangue escorrer sobre o papel amarelecido pelo tempo.
Assim ficou a carta, manchada por uma lágrima e algumas gotas de sangue.
“Eis aqui minha assinatura... Que morra como morre o presente.”, murmurou, enquanto perfurava o outro pulso.
Fechou os olhos por um instante e, quando os abriu, cambaleou e caiu sobre o carpete tingido em vermelho. Não fechou mais os olhos, contudo, à medida que seu sangue escapava de suas veias, o sono chegava, e, mesmo de olhos abertos, dormiria, por uma última vez, para sempre.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Um dia em um retrato na estante

Eu caminhava por entre a chuva, sem guarda-chuvas. Deixava-me atingir os pingos no peito, no rosto. As pessoas olhavam-me com olhos atônitos, e eu, indiferente, seguia em frente.
No curso em que ia e em que levava as idéias não pararia nunca, privei-me então do pensamento em benefício de minha saúde. Após alguns poucos minutos mais de caminhada, restringi-me às gotas de água quente do chuveiro da minha casa.
Enxuguei a cabeça e a cabeleira, deixando a toalha sobre uma cadeira. Vesti-me para ir à rua, não chovia mais. De todo, foi isso o que fiz enquanto em casa: enxuguei-me, banhei-me, enxuguei-me mais uma vez e vesti-me. “Para que me serviria a casa senão para isso?”, ri para mim mesmo, enquanto passava a chave duas vezes na fechadura, trancando assim a porta.
Depois, já na rua, olhava com os mesmo olhos cegos às pessoas que me rodeavam. No céu pendia uma nuvem, uma única nuvem, e todo o resto era só uma mistura de cores frias que arrebatava qualquer coração de poeta. Acompanhando esse céu, corria uma brisa leve, sem cor, mas também fria, e balançava meus cabelos de tal forma que eu precisava estar sempre com as mãos à cabeça para segurá-los.
Caminhei de casa até a praia, já que não era um caminho demasiado longo. Chegando lá sentei em um dos poucos bancos ainda inteiros. Não me importei com a madeira molhada, nem com a noite que já ia chegando: eu só queria estar ali. Cheguei a tempo de ver o espetáculo solar, e fiquei estupefato com a singularidade da beleza das produções naturais.
Ao mesmo tempo, como num “turismo no vácuo”, enroupei minha mente dos pensamentos que antes havia me privado. E toda a paisagem perdia sua fundamental forma, e seu equilíbrio se desfazia atrás dos meus olhos.
Depois de muito lá, desprendi-me da visão canônica dos dias: eu só via que o céu já estava escuro. Começou a chover, mais uma vez. Parado eu estava, parado eu fiquei. E como num déjà vu, apresentei-me novamente como um ser a ser observado, na sua mais ímpar disformidade e abstração.
Os olhos se afogaram em lágrimas seguindo-me até em casa. Passei a chave na fechadura, duas vezes. E abri a porta com um desespero incomum. Eu não estava com medo, eu precisava me esconder. De que? De quem? Eu precisava fugir dos olhos!
Entrei e fechei a porta com brutalidade. Dei uma risada e um suspiro. Uma vez em casa, em meu mundo, nada poderia me ameaçar.

domingo, 26 de outubro de 2008

Dias

E o grito do desesperado
É da boca pra dentro, pr’alma.
O que sai pra fora é o silêncio
De quem grita em pé de ouvido surdo.

A máscara esconde o rosto
Ou será que esconde o espírito?
Disfarce de camaleão em selva de concreto
É se fingir de morto em alguma lata de lixo.

Olhos vendados são vendidos
Pelos comerciantes na TV.
Toda a população compra
Só pra se privar de ver.

Chicotes são dados e chicotadas distribuídas
A população sente o couro, a carne ardida.
As feridas podem cicatrizar um dia
Mas as dores das marcas ainda serão sentidas.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Sistema judiciário

Ser condenado por se ser quem é
Sentindo o peso da própria existência
A esmagar o corpo magro
Em almofadas de concreto e aço.

Estar preso à sua própria liberdade
Num eterno ir e vir.
Brincando como se brincam as crianças
Vai e vem, vai-vem.
Balançando no balanço da vida
Indo e vindo
E não saindo do lugar.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Artistas da vida

A maquiagem não servia, de todo, para esconder as marcas com que a idade os havia presenteado; antes servia para que apagasse seus medos, suas preocupações e angústias. No palco, faziam o contrário de todo ator: deixavam finalmente de representar, para ser, por fim, quem realmente eram.
Debaixo das luzes dos holofotes fica-se cego, ou enxerga-se mais do que se deveria enxergar. Os julgamentos são extintos, a platéia finge não existir. ‘Ó, glamour do palco, não nos deixe!’, Rogam os artistas apaixonados, veneradores de um deus de madeira e pregos, cortina e corda, luz e sombra; um deus que permite àqueles que lho crêem a dor, o sofrimento e as mágoas; contudo, entrega-lhes de mãos estendidas, a cura para a doença, o perdão pelo crime e pelo pecado; deus que dá amor em vez de castigo, que é amigo em vez de inimigo, deus que não é pai, é irmão, esposa e marido.
Porém, o show tem hora para acabar, e os artistas fatigam-se; faltam-lhes as vozes e tremem-lhe as pernas. Uma pena, o martírio recomeçará; a rotina voltará a atacar e só lhes restarão os ensaios para que possam se libertar e parar de atuar.

domingo, 14 de setembro de 2008

O sobrado do fim da rua 2

No fim da rua, sobrou um sobrado.
Sobrou um sobrado no fim da rua.
Além do sobrado, sobraram lembranças
Amores e ódios
Alegrias e tristezas.
Tudo isso que sobrou
Sobrou com o sobrado
O sobrado do fim da rua.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

De volta ao pessimismo

Os prédios caem uns por cima dos outros
Amontoando-se em ódio e desgraças
Os jardins, com as flores e as roseiras, estão soterrados
Escondidos debaixo de uma espessa fumaça
Que se ergue aos céus em meio ao sonho e à esperança
Separando-os em um e em outro.
À tarde, não se vê mais a luz alaranjada do sol
Ou é noite, ou as nuvens cinzentas encobrem o infinito azul celeste.
Às crianças restou o concreto
Aos adultos, a culpa.
Ninguém ousa levantar a cabeça
Todos choram pelo ocorrido, com os corações apertados.
O próprio sonho se tornou uma utopia
E viver, um castigo divino.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Cérebro de minhoca

Não sei se são meus olhos
Ou se o relógio está adiantado,
Mas já é noite, e o céu continua claro.

Talvez seja a lua,
Que hoje brilha como o sol nos dias quentes.
Eu não sei o porquê.

Tem tanta coisa que eu não entendo
Que eu já deixei de tentar entender.

Deve ser melhor não saber de tudo.
Não conhecer tudo.
Porque assim há sempre algo a ser conhecido
Algo para surpreender os olhos velhos
E acordar os cansados.

... Que injustiça!... Onde ficam os cegos nessa história?

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Uma tarde sentado na beira de uma rodovia federal

A água corre suave no rio
Nem parece existir correnteza.
Essa idéia muda no meu ato de mergulhar
E tentar inutilmente nadar contra a inércia das águas.

Quem vive na cidade se desacostumou com a vida no campo
Com a vista serena dos regatos e das árvores
E o canto perene dos pássaros.

Quem vive na cidade esqueceu que a vida floresce
Lembra apenas que a vida corre e que o tempo é precioso
Não porque é tempo, mas porque é dinheiro.

E no campo, as árvores balançam à menor brisa
Dançando conforme a música
Em sincronia perfeita.

Os pássaros voam
E cantam com os grilos
Num coral de vozes hipnotizador.

Tédio é trabalhar
E o tempo passa lento
Para aqueles que o sabem aproveitar.

Indiferente à cidade é o campo
E tudo o que lá acontece
Recebe de bom grado a indiferença dos seus irmãos da cidade.

No campo, se mantém a essência
Na cidade, ela foi perdida
Longa é a vida no campo
Na cidade, derradeira.

domingo, 20 de julho de 2008

Fade to black

Oh, céus, por quanto mais tenho que esperar?

Já é hora, o que tem que ser feito é continuar.

Mas, ninguém me ouve, estão todos surdos.

Estão todos surdos, ou será, que sou eu o mudo?

Disso eu não sei, só sei do que falei,

E o que falei, pensei.

Contrariando todas as normas

Surgi como se surgem as cobras

Não esperavam minha chegada

Muito menos minha história desgraçada.

Ao terminar fui socorrido

Por quem só tem a dar amor

E nesse tempo transcorrido

Tudo o que eu senti foi dor.

Do melhor mel provei

Pelo pior castigo passei.

Do maior amigo perdi

E do maior inimigo ganhei.

Só em mim sobrou a fúria

Só em mim sobrou doença

Mas, em vista de cego

A morte não é a maior sentença.

domingo, 13 de julho de 2008

Nós

O sol e todo o céu passaram a se esconder por trás das nuvens

Os dias agora são mais escuros e tristes

E já não tememos pisar o chão com os pés descalços.

A dor e o temor foram extintos

O calor e a fraternidade também.

Nós nos tornamos mais frios

O calor das máquinas é mais sedutor que o calor das pessoas

E já não confiamos uns nos outros

Não damos as mãos

Não nos abraçamos mais.

Éramos seres selvagens em nossa própria floresta

Agora vivemos em cativeiros

Limitados pelas grades

Feridos pelos chicotes

Entediados pelas correntes.

Nossa própria consciência nos impede de abrir as asas

De quebrar as correntes – sim, temos força pra isso! –,

Romper as celas e voltar ao inimaginável

Que antes era chamado de ‘lar’.



[solitude_]

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Prova

Que cesse então a tempestade!

Já conseguiram provar-me de que sou nada!

Estou enfraquecendo,

Sozinho, no olho do furacão.

Talvez o que eu precise é ceder

Soltar mais minhas pernas e deixar-me levar

Voar para longe do solo

Para além das nuvens

Ou me tornar parte delas, brancas ou cinzentas

Para poder chorar sem medo ou timidez

Pelas desgraças do mundo habitado.

As nuvens choram o sangue dos homens inocentes

E a mentira que sobrepuja a verdade.


Se querem viver nesse mundo,

Então acostumem-se com o sofrimento.

terça-feira, 3 de junho de 2008

O verme e o menino

Era belo e ensolarado o dia, mas Davi o enxergava com outros olhos. É relevante dizer que desde a morte de sua esposa ele vivia em um mundo tempestuoso. Seus sentimentos eram um turbilhão de confusão e tristeza, mas, tudo aquilo estava prestes a mudar. A dor que a ausência de sua esposa lhe infundia seria logo compensada por um novo amor, o amor de um amigo. Davi havia de amar, tanto quanto amou sua esposa, um ser a quem ele chamaria por Brutus.

Brutus era uma pequena larva, para Davi, um verme. Davi o havia encontrado pelo seu jardim, suas cores exuberantes e sua inteligência rara serviram de atrativo para um primeiro contato. Com uma conversa boba e desinteressada, os dois logo se entenderam.

Passaram-se os dias e as noites, e eles continuavam conversando. Não demorou para que Davi o convidasse a ir morar em sua casa. Brutus, de prima, não aceitou. Disse que estava muito cedo para um relacionamento tão íntimo – mesmo que já o fosse em demasia -, e que Davi apenas fizera tal convite por ainda estar abalado com a ausência de sua esposa em sua vida. Davi procurou por todos os modos desmenti-lo, mas Brutus se posicionara de forma até então imutável.

O tempo voou como gaivotas no mar; aparentemente despreocupadas, mas só aparentemente. Havia uma razão para tudo aquilo acontecer, a qual Davi só descobriria no mais tardar, quando já não tivesse utilidade qualquer informação que ele viesse a adquirir. Depois de um mês de longas e proveitosas conversas, um laço de amor fraterno fora criado. Laço tão forte este como Davi nunca havia visto antes, até parecera esquecer por completo a ausência de sua esposa.

Com um intervalo de tempo tão longo, Davi se sentiu à vontade para refazer a antiga proposta a Brutus, dessa vez a resposta veio para encher ainda mais a sua vida de felicidade. Brutus aceitou o convite sem pensar duas vezes.

Os dois agora viviam sob o mesmo teto e dormiam no mesmo quarto. Davi em sua antiga cama de casal, que ainda cheirava o perfume de sua esposa, e Brutus, num pequeno aquário com terra e algumas plantas. Era difícil dormir, os dois conversavam por horas, durante a madrugada. Várias foram as vezes em que os dois se entregaram ao sono somente pela manhã.

Exatamente cinco meses se sucederam após o ingresso de Brutus à vida e à casa de Davi, e, como tudo o que é utilizado em exagero, o laço fraternal que fora antes criado já se desgastava e ameaçava desatar. Era preciso ser realista, a amizade dos dois estava fadada ao fracasso, depois de tempos de esperança em uma vida dos dois juntos.

Sentindo Brutus não mais como um amigo, mas sim como um peso que precisava, por consideração, carregar, Davi cansou-se e, em uma das madrugadas em que não conseguia dormir pela conversa excessiva de seu antigo amigo, explodiu em fúria, agredindo-o ferozmente com palavras ásperas e grosseiras.

A noite silenciou-se pelos gritos, mas a decepção manteve os dois acordados. Brutus, que fora sempre mais esperto, fingiu dormir, para que seu colega de quarto o fizesse primeiro e sem medo. Por todo o tempo em que passou enfiado em um emaranhado de raízes, dentro de seu aquário, Brutus pensava somente em uma forma de vingar-se. Há muito tempo ele não era alimentado como devia, estava faminto e sedento, e Davi nada fazia ao ver a sua situação deplorável. A amizade criada fora tão forte que se transformara, em um piscar de olhos, em indiferença e ódio.

Foi então numa tarde de tempo nublado, que Brutus executou o plano em que havia pensado durante todas as noites depois da briga. Continuou agindo como antes, mas, ao primeiro vacilo, pulou sobre as costas de Davi e cravou com ferocidade seu ferrão envenenado. A dor que Davi sentiu o fez desmoronar-se sobre si, e Brutus não se contentou. Observava agora com desdém o corpo de Davi estirado no chão, contudo, sentia que tinha ainda que fazer algo. Preparou-se então, e começou, pelos pés, a devorá-lo. Estava guardando a melhor parte para o final.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Desesperança

Sóbria é a noite e embriagados estamos nós.

Entendemos tudo errado e confundimos o inimigo.

Guerras são travadas por nada e o perdão é negado por tudo.

Por todos.

Essa é uma terra desleal e esses são dias de verdades.

Abrir os olhos não significa enxergar.

Apenas um passo foi dado... Um passo já foi dado!

Mas nosso caminho é muito longo para ser percorrido com somente um passo...

***

O menor espaço entre dois pontos é uma reta;

O menor espaço entre o inicio e o fim de um caminho é um passo;

O menor espaço entre o erro e o acerto é a tentativa;

O menor espaço entre o bem e o mal

[é o homem].

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Eu posso fazer tudo do meu jeito?

Eu tento

Mas não consigo entender

Por que ainda me chamam de super-homem?

Eu já não dei mostras suficientes

De quanto sou fraqueza e orgulho

Na mais pura condição humana?

Já não me humilhei o bastante

Sendo homem e nada mais

Agindo como alguém normal

Contradizendo as expectativas

E decepcionando meus admiradores?

Quantas vezes mais terei eu

Que trair a mim mesmo

Para satisfazer quem sequer realmente se importa

Mas finge o fazer

Por ironia cruel e miserável

E amor incoerente e mentiroso?

A mentira dos outros torna-se verdade para mim

Os outros são os olhos que me observam

Frente ao espelho

Nu

Desprotegido

Envergonhado

Eu sou o ser a ser observado

Sou quem deve ser sempre julgado

Por uma justiça além do homem

Pois sou somente isso

Um homem e nada mais

E as injustiças me atiçam

E os erros me entristecem

Será então

Que eu posso contar

Com o mundo ao meu redor?

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Em defesa de Cláudio Andrade

Muitos proclamavam Cláudio Andrade como “O mutante dos tempos”. Por muitos anos eu não soube ao certo o verdadeiro sentido do nome que o atribuíram, mas de algum modo sabia, instintivamente, exatamente aquilo que devia saber.

Pouco tempo atrás vim descobrir que Cláudio Andrade não tinha nada de mutante, era apenas um ser inteligente. O que chamaram de mutação era, na verdade, a forma como enganava a morte aquele velho senhor.

Não se pode negar que ele estava sempre mudando, é evidente a transformação de seu ser em outros, quem sabe até fosse somente uma transmutação para corpos mais jovens. Mas sim, o importante agora é exaltar Cláudio Andrade, que por tanto tempo foi visto com olhos recriminadores por toda a sociedade da vila de Santo Antônio.

Ele se transformou em diversas criaturas, através dos séculos. Com isso enganou a morte, que sempre quando ia buscar seu corpo, já o encontrava sem vida ou habitado por outro. Era mesmo um senhor muito esperto. Mas eu sempre me perguntava como ele fazia tudo o que fazia.

A resposta, um sábio senhor idoso, morador da vila desde os seus primórdios e de nome parecido – Carlos Andrade era ele –, me deu:

É simples – Disse ele - Cláudio Andrade aprendia com as experiências antes mesmo de as viver. Pessoas como ele nascem com intervalos de milênios. Era um método de certo modo estranho e diferente, mas não por isso menos correto ou pior que os outros, muito pelo contrário, era, senão o melhor, um dos melhores já feitos por um homem em terra ou em mar. Enquanto as outras pessoas esperavam a morte chegar, Cláudio Andrade a procurava para fugir dela.

Ao escutar tudo isso, gritei:

- Isso sim é desejo de viver!

E minha ingenuidade chegou a embaraçar o senhor, fazendo-o encerrar com violência a conversa, mesmo que, por minha parte, ela já estivesse encerrada.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Conto para a eternidade - minha eternidade

Certo dia, quando me encontrava confortavelmente acomodado em minha poltrona, frente à janela, avistei quase que sem querer dois olhos grandes e vermelhos a me fitar. Encarei-os como que por instinto. Meus olhos arregalavam cada vez mais, e meus pelos do corpo se levantavam. Sentia o congelar da espinha me aterrorizar.

Inicialmente, preocupei-me em saber o que eram aqueles dois olhos; depois, preocupei-me em saber porquê me fitavam sem cessar; e somente depois disso preocupei-me com minha segurança.

Levantei da poltrona com as pernas bambas, apoiei-me com os cotovelos sobre o batente da janela e parei. Ali fiquei por um tempo. Pensava sobre o que poderia ser, mas, de certa forma, havia me esquecido da presença dos olhos. Foi quando andei de um lado ao outro, e voltei a me assustar. Eles continuavam a me encarar. Seguiam-me incansavelmente, e eu, indefeso, abaixei a cabeça como um sinal de submissão. Foi meu maior erro.

As luzes se apagaram e o espetáculo começou. Pulou sobre mim algo que eu desconhecia. Senti rasgar-me o peito e tirar o que havia de ficar lá dentro. Era meu coração.

Então sangrei. Sangrei até que me sentisse banhado pelo meu próprio sangue. Senti tudo o que tinha ir-se embora. Tudo, menos a dor, que era a única coisa que me mantinha ainda vivo.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Sono H

Cavalos brancos correm pelo céu. Eles não têm asas, e se confundem com as nuvens.

Borboletas se arrastam pelo chão. Suas asas não suportam o peso da sua forma anterior.

Elas perderam a beleza e a graça, e agora são confundidas com folhas secas caídas ao solo.

Desatentos, alheios, nós as pisamos, e, ao perceber, sentimos nojo por ver o que tinha por dever se manter escondido.


Tudo é normal.


Olhamos para cima e contemplamos as nuvens.

De repente, elas se separam: são os cavalos brancos, correndo pelas estradas invisíveis dos céus.

O espanto é inevitável, e é ele quem começa a nos acordar.

Os cavalos iniciam a descida, e as borboletas o vôo.

As coisas começam a se inverter, e a voltar aos seus lugares.

Tudo ao seu tempo.

O sonho não acabou ainda...

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Sem título

Eu caminho por entre as lágrimas dos deuses.
É a chuva matinal, que hoje, mais parece uma tempestade.

Mas eu sou inatingível.
Eu sou inabalável.

As gotas de água que ousam se precipitar sobre a terra evaporam à minha presença;
E mesmo o vento, que insiste em correr forte somente em dias como este, dobra-se ao pressentir nosso encontro.

...

A chuva cessa e o vento acalma: este já não corre, é preguiçoso e, como um pedido de desculpas, incita os homens a receberem seu carinho.

Todos saem à rua.

E finalmente eu posso ser atingido
Finalmente eu posso ser abalado.

É quando eu percebo que aquilo que apavora os homens é o que me protege,
Só por me manter longe deles.

Porque é mais fácil andar entre animais selvagens que por entre os homens.

sábado, 12 de abril de 2008

Desculpa

Como um cavalo de fogo que corre pelos pastos, você passa e deixa seu rastro; marcas que jamais serão apagadas.

Os homens, nas mãos das mulheres, são escravos. Por cada palavra dita na hora errada, cada gesto não feito, nós sofremos. Pagamos com nosso próprio sangue.

As chibatadas doem, as correntes machucam, mas o pior é saber que já não existe esperança. Há muito a liberdade virou uma utopia, mas, mesmo assim, as vezes é bom mudar a chibata.





- Em relação ao título do texto: desculpa por agora postar apenas esses pequenos poemas, o trabalho me sufoca e as obrigações bloqueiam minha criatividade para textos mais longos. A única inspiração que consigo vem das minhas frustrações pessoais, e só é suficiente para poemas como esse e outros textos inúteis. Quem sabe um dia volto a ser como era antes e volto a postar minhas histórias tão queridas e feitas com tanto amor. -

domingo, 6 de abril de 2008

Literatura de diário

Um belo dia hoje passei
Desde que aquela menina avistei.
Seus pés a conduziam lentamente
Adentrando meu coração, indiferente.
A luz do sol seu sorriso espelhou
E em meus olhos tal brilho chegou.

Mas agora me peguei assustado
Quando percebi que por outra mulher já estava apaixonado.
Amor impossível, eu sei.
Mas se não sonhar, para quê viverei?
Tudo isso logo acabou
Quando gritaram:
“O sinal já tocou!”.

Em casa, cheguei e dormi.
E em cada segundo de sonho
Sonhei em dormir.
Ao acordar percebi:
“Meu dia perdi!”.
Exclamei, e voltei a dormir.

Eu sei, poesia fútil.
Mas, quem irá julgar,
O que é útil ou inútil?
Vai saber
O que eu quero mesmo
É aprender a escrever.

terça-feira, 1 de abril de 2008

O texto de uma linha só

Esse é o texto de uma linha só.

terça-feira, 4 de março de 2008

A subjetividade do "EU"

Eu sou um
Eu sou dois
Eu sou tu
Eu sou vós

Eu sou tantos que não consigo contar
Eu sou tão poucos que não consigo me achar

Eu sou erro
Eu sou contradição
Eu sou psicodelia
Eu sou confusão.

Eu sou alguém e sou ninguém
Eu sou quem vai e sou quem vem.

Eu sou quem tenta
Eu sou quem erra
Eu sou quem tenta e às vezes acerta
Eu sou alguém que quer fazer
Eu sou alguém que tenta ser:

Eu.

Eu sou quem nunca, nunca se mostrará como quem realmente é, mas sim, como quem você quiser.

domingo, 2 de março de 2008

A guerra

Acordei – ou adormeci? – de repente, perto de uma das lojas do meu avô, o senhor E. Era um dia escuro, mas não pelas nuvens, apenas pelo rancor humano, que, especialmente naquele dia, se firmava cada vez mais como protagonista de uma cruel peça onde muitos perderiam e provavelmente ninguém ganharia.
Por incrível que pareça eu parecia ser o único espectador daquele espetáculo, as outras pessoas presentes no local agiam como se fizessem parte do elenco. Levantei-me da calçada onde estava deitado e pude perceber que as pessoas protestavam por algo ou alguém, vi também um trailer de madeira parado alguns metros na minha frente. Caminhei em passos longos pela rua de piçarra em direção ao trailer, lá parei e fiquei recostado sobre ele, como se esperasse alguém se manifestar contra aquilo. Nada aconteceu, e quanto mais o tempo passava, mais liberdade eu ganhava. Olhei por trás dos ombros, e ninguém parecia se importar. Resolvi então entrar. Entrei e deparei-me com um ambiente bem maior e diferente do que eu havia imaginado, aquilo mais parecia uma casa! Enquanto apreciava a decoração - de muito bom gosto - do trailer, alguma coisa aconteceu. Soou um barulho ensurdecedor e o trailer pareceu entrar em movimento. Logo eu percebi que ele não só parecera entrar em movimento, como realmente estava descendo ladeira abaixo – e eu dentro dele. Pensei então em pular, mas logo que imaginei as conseqüências que acarretaria minha queda, naquela velocidade, desisti. Fiquei então pensativo sobre o que fazer, e cheguei à conclusão que nenhuma ação minha mudaria o curso do trailer. A única coisa cabível a se fazer era esperar e relaxar, enquanto, no mínimo, um grande acidente se aproximava. Cochilei, e quando acordei já não estava mais no trailer, estava no mesmo lugar em que havia acordado –ou adormecido?- anteriormente. Avistei então, de longe, uma fumaça que surgia na loja do senhor E. Corri para lá e encontrei-o gritando: “Sempre levam minha casa, sempre eles! Nunca me deixam em paz!” – Tentei acalmá-lo com doces palavras, mas ele estava inconsolável, pude perceber também que seu olho direito estava lesionado, comecei então a me questionar sobre o que havia acontecido.
Não muito tempo se passou e meu avô já estava de volta à sua sala, tudo queimava, mas ele parecia não se importar. Andei então em sua direção como se quisesse tirá-lo de lá, pelo perigo que representava ficar ali, em meio a todas aquelas chamas. Infelizmente – ou felizmente? – fui atacado, de súbito, por uma mulher que me abraçou fortemente e disse: “Que saudades, Rômulo. È bom saber que podemos contar contigo”.– Eu fiquei sem entender, inicialmente. Foi quando percebi que estava, na verdade, em uma biblioteca, e que havia mais duas outras mulheres por ali, remexendo os livros, como se buscassem algo que as salvariam das chamas que cada vez mais adentravam o lugar. A multidão parecia não querer ajudar, pelo contrário, parecia gritar como se gritam os guerreiros após uma vitória em campo de batalha. Não demorou muito até que eles entrassem para terminar de destruir a biblioteca, as três mulheres tentaram intervir, mas de nada adiantou. Enchi de ar os peitos e furioso gritei: “O que querem aqui? Nenhum motivo têm para destruir esta biblioteca, nada do que tem aqui pertence a vocês!” – Então senti em minha mão uma outra que a segurava, quase sem força, puxando-a para baixo, como se quisesse para eu me abaixar. Sentei-me então e vi que era uma antiga professora minha, ela que havia dito antes que era bom saber que podiam contar comigo, mas eu não a reconhecera, como se esta estivesse usando uma máscara para preservar sua verdadeira identidade. Então, antecipei-me e perguntei: “Por que eles fazem isso? Nada aqui é deles”.– E deixei escapar uma lágrima, que caiu sobre o seu peito. Ela enxugou o caminho percorrido pela lágrima em meu rosto e com voz doce respondeu: “Alexandria também não era deles, querido. Mas nem tudo está perdido”.– E desfaleceu sobre si, deixando apenas em mim uma esperança em algo que eu ainda não podia compreender.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Prelúdio

Direcionem-se a mim. Tentem enxergar meus olhos, enquanto eu abaixo a cabeça. Procurem pela morte, vão fundo, esperem por ela; tenho certeza que não esperarão por muito tempo.

Prestem atenção em meus lábios; se fizerem isso, perceberão que meu sorriso não é sincero. Só assim vocês entenderão o porquê dele estar sempre à mostra.

Assistam ao espetáculo. Vejam tudo com olhos arregalados, atentos. Eu lhes direi o momento, e poderão se abrir em gargalhadas; no fundo, eu sei, é isso o que querem.

Se seguirem as recomendações, poderão dizer, ao final: “Ele era um bom homem”, e encerrar o discurso.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Atualidade sugerida

Ele estava deitado no sofá com as pernas jogadas ao ar, seu olhar fixo no nada denunciava parcialmente suas intenções. A janela, a mesa, a televisão. Seu olhar vagava pelo quarto, aleatoriamente, sem direção, desgovernado.

Ele parecia quieto, mas, na verdade, tinha toda a impaciência de seu corpo mantida sobre seus pequenos olhos negros, que se esbaldavam e se deliciavam com o que não podia ser visto.

Seus pensamentos eram vagos, incompletos. Logo seus princípios seriam quebrados e sua fúria provocada. Nada que alguém além dele fosse fazer; Nada em que alguém além dele fosse importante.

Um jogo havia começado, como já previsto: ele contra ele. Uma luta seria travada por duas pessoas totalmente diferentes, dentro de uma só. Uma luta invisível, mas muito prejudicial a ambos, ou simplesmente, ele. Uma luta onde só haveria um vencedor, e um único prêmio: ele.

Depois de muito, o cansaço se fez presente em cada participante do jogo, no único. As últimas cartas foram postas à mesa, o jogo havia terminado. Não se sabe ao certo quem vencera, a única coisa que se sabe é que, ao final, a parede às suas costas estava manchada pelo seu sangue, em seguida seu corpo e o chão. Dali em diante seria só uma questão de tempo até que o vermelho de seu sangue se tornasse mais vivo que ele mesmo.