sexta-feira, 30 de novembro de 2007

O Show

Germano assistia àquele show com alegria tão grande a ponto de sequer poder medi-la. A fala fluente; os gestos majestosos; a delicadeza; a beleza da voz e das atrizes; ele procurara nos céus por coisa tão bela, mas se deu conta de que perdia tempo, pois tudo aquilo só se encontrava no inferno.

Era o show da carência humana, da necessidade de atenção; um grito de agonia daqueles que somente com seus méritos, qualidades ou defeitos jamais conseguiriam ser notados.

Germano achava mesmo tudo aquilo muito belo, mas, sinceramente, não entendia o porquê de se fazer um show tão bem articulado como aquele em uma escola. O lugar dele era no circo!

Palhaços e mágicos seriam desbancados, tudo por causa daquele show. As cadeiras que já eram muitas, quando vistas naquela época pareciam ser mais ainda. Tudo por causa daquele show.

Mas então por quê não estavam lá? Certamente seria por escolha própria, porque teriam, com certeza, o lugar que quisessem em qualquer circo do mundo inteiro, ou em qualquer jaula, zoológico. O local não importava, mas sim, o prestígio que ganharia seu show. Ali sim, todos poderiam observá-las. Finalmente seriam por todos notadas.

Mas não, elas não levariam jamais seu show a qualquer lugar maior e mais aclamado pelo público. Pareciam gostar mesmo de fazer tudo aquilo em ambientes não muito propícios ao sucesso do show, tal qual uma sala de aula ou uma parada de ônibus, mas, talvez fosse por sentir pesar a consciência, sabendo que as crianças não se divertiriam mais com os palhaços, se deslumbrariam com a mágica e muito menos observariam curiosas o macaco ou o jumento. Elas tomariam o lugar de todos eles.

Conscientizado de tudo isso, Germano se cansou de assistir ao show, como todos os outros presentes no local. Ofereceu então, para tentar acalmar os ânimos das atrizes, um pouco de pipoca. Logo se ouviu o grito que surgira de não muito distante, porém, distante o suficiente para só falar não adiantar. Foi preciso mesmo um grito.

“Germano, não alimente animais selvagens”!

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Carta a Guilherme

Guilherme,

Escrevo a ti para pedir ajuda. Sabes que sempre fui a favor da liberdade dos homens, mas hoje me vejo condenado e preso a um regime draconiano. Não consegui pensar em pessoa melhor para me ajudar a sair deste buraco. Não peço que viajes até aqui, pois sei do teu estado atual de saúde e jamais quis que tivesse uma enfermidade mais grave, rogo-lhe apenas por instruções de procedimento para que eu possa rapidamente me livrar dessa chaga da humanidade que é a tirania.

Mudando de "pau pra cacete" (como costumávamos dizer), o que tens no peito que te faz sentir tantas dores? Tu, que sempre fora tão forte e resistente agora está doente, jamais imaginei viver tanto quanto tu, e muito menos me ver são e saudável enquanto tu estás enfermo. Queria te desejar melhoras, meu grande amigo. Confesso-te que sinto saudades, e muitas. Lembro da época em que estudávamos juntos, antes de conheceres Mirela. Quando ficávamos às luzes dos postes antigos da cidade, sentados na calçada conversando e tomando um espartilho. Aquelas conversas jamais voltarão...

Aproveitando o momento, te direi como anda todo o pessoal por aqui: meu pai anda muito doente, mas se recusa a parar de trabalhar. Já tivemos várias brigas por conta disso, o melhor pra ele, hoje, seria o descanso; Meu irmão anda estudando algumas obras de Max Ernst e Salvador Dali, pretende ser pintor e tem muitas influências surrealistas; Quanto a minha mãe, só tenho a lamentar. Tudo isso que vem acontecendo a afetou em demasia. Foi tomada inicialmente por ataques esporádicos de loucura, o que se tornou cada vez mais constante e hoje ela está completamente dominada pela insanidade; Tu sabes como eu estou, apesar disso tudo de que te informei me encontro sempre bem, ou como ironizava Voltaire, “o melhor possível”.

Agradeço-te por tudo, meu grande amigo. Sabes que ainda te considero um irmão que da barriga de minha mãe não saiu. Assim que acabar com essa ditadura terrível que assola minha nação, irei ao teu encontro para tomar alguns copos de leite (já que não podes mais beber nossos antigos drinques) e descansar como quem não tivesse trabalho a fazer. Antes de morrermos quero ainda arranjar muitas histórias nossas para aos céus ou ao inferno levar comigo.

A tudo isso acrescento aquilo que sempre dizíamos nos momentos de embriaguez, e que certamente diríamos se tivéssemos outra oportunidade:

“Il écrase diffame!”

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Tributo

“Meu Deus, qual foi o crime que cometi para me ser atribuída tão dolorosa sentença?”, falou H., “Quão confusos são meus sonhos e não diferente deles minha vida. Ontem, vi-me renegado e com cara de mosca e hoje, vejo-me aprisionado na figura monstruosa da barata. O que será, pois, que espero pra ser amanhã?”

Fez-se silêncio por alguns segundos. Não satisfeito H. voltou a reclamar.

“Como eu sofro, nasci rico e belo, mas tudo o que tinha perdeu-se nos labirintos da minha própria mente. Quem será, pois, o cruel escritor dessa absurda e surreal história que é minha vida?”

“Franz Kafka”, disse a pálida parede, surpreendendo-o.

História curta

- Mate-a!

Disse Melissa, enquanto apontava para o chão.

- Não o farei.

Respondeu H.

- Se não o faz, eu faço!

Retrucou ela, furiosamente.

Em seguida H. fez-se triste e inconsolável, enquanto dizia:

- Por favor, não.

Melissa ficou sem entender o motivo de H. não querer realizar simples ato. Então perguntou:

- Por quê não? É só uma barata.

Indignado com o comentário de Melissa, H. inicia um breve discurso, tentando assim convencê-la a não matar a barata.

- Esperava da tua parte, ao menos um pouco mais de respeito. Não vês que a barata, como um inseto asqueroso e nojento, vive entre nós mesmo sendo renegada e repudiada pela maioria? Não vês, pois, que ela é o que é, e aceita tal fato, enquanto nós fingimos ser o que não somos?

Não vês que ela, mesmo sendo frágil e vulnerável, enfrenta a tudo e a todos, fugindo apenas quando a morte é iminente, enquanto nós estamos sempre fugindo? Não vês que, por tanto tempo viveu a barata, sem mudar, enquanto nós dependemos da mudança pra viver?

Disse ele.

- Desculpe, não.

Respondeu Melissa, seca e friamente, indiferente ao que H. acabara de falar.

Ouviu-se depois apenas um som surdo e não muito agradável. Era o som da morte da barata.

O Sonho

Alguém caluniara o senhor H. O pacote pelo qual pagava no hotel lhe dava o direito ao desjejum em seu quarto todos os dias, porem, hoje ele não estava lá.

H. havia acordado com a visão um pouco turva, e já se sentia irritado pelo fato de seu desjejum não estar onde devia. Mesmo de barriga vazia, H. prosseguiu nas suas ações de rotina, e começou a se preparar para o trabalho. Despiu-se inteiramente e entrou no banheiro. Não se olhou no espelho, visto que, naquele momento, sua visão não era das melhores. Entrou na banheira e tentou relaxar, antes de mais um dia estressante de trabalho. H. trabalhava num banco, e sempre fora um sujeito materialista e muito ambicioso. Também se importava muito com sua aparência, já que não conseguia ver nada, além disso. Alguns minutos se passaram, e H. continuava na banheira. Seu pensamento estava longe, tão longe que nem ele poderia o achar. De repente um barulho cortou o silêncio que reinava em seus aposentos: Toc, Toc. Era o barulho de leves socos que batiam na porta do seu quarto. H. saiu do banheiro e vestiu-se rapidamente, logo depois foi atender quem o chamava. Era a senhorita Sofia, uma das empregadas do hotel. Em suas mãos trazia uma bandeja com o desjejum do senhor H., que há muito se esquecera do mesmo. Ele a atendeu com discrição, e esperava ser tratado de forma igual, ou ao menos semelhante. Não foi o que aconteceu. Ela o olhou de um modo estranho, como se o desprezasse, mas nada falou. Entregou a bandeja e retirou-se. H. não entendera ao certo toda aquela situação, mas não podia deixar que influenciasse a sua rotina, com a ordem de afazeres já adulterada pelo atraso do desjejum. Colocou a bandeja sobre a mesa e pôs-se a vestir seu uniforme. Já estava pronto para ir trabalhar, mas ainda tinha fome. Olhou no relógio, que se encontrava pendurado na parede, e percebeu que não lhe faltava muito tempo antes que fossem buscá-lo. Apressou-se ao comer seu desjejum, e foi direto para a recepção do hotel, onde seu motorista já o esperava impaciente. H. se desculpou pelo atraso, e percebeu que também o seu motorista parecia o ignorar. Saíram os dois juntos, no carro, em direção ao banco. Durante a viagem nenhuma palavra foi trocada. Mesmo com o atraso de H., eles chegaram no horário de sempre ao banco. H. despediu-se do motorista, que novamente não lhe respondeu. Inabalável, seguiu seu caminho até a porta do banco. Era uma porta de vidro espelhado, e pela primeira vez nessa manhã ele via sua própria face. H. ficou terrivelmente assustado com o que viu, sua face agora era a de uma mosca. Ele não entendia como aquilo havia acontecido e nem o porquê. Como defesa própria, preferiu achar que era sua mente lhe pregando peças. Finalmente ele estava abalado. Passou pela porta do banco, onde todos pararam de cumprir suas obrigações para olhá-lo.

__ O que estão olhando? ! – Perguntou ele, furiosamente – Por acaso tenho cara de mosca? !

Em seguida, nenhuma palavra foi pronunciada. Todos se viraram e voltaram a fazer o que deviam. Dirigiu-se então até sua sala. Ficou mais aterrorizado ainda quando percebeu que seu nome não se encontrava mais na porta daquele escritório. Não conseguia entender como tudo havia mudado tão rapidamente. Ele, que fora sempre tão respeitado, agora era ignorado. Ele, que sempre fora um sujeito de tão boa aparência, agora tinha a face de uma mosca. Aquilo não deveria estar acontecendo, não podia estar acontecendo. Toda sua vida havia acabado, ele havia caído em desgraça, e tudo por causa de uma coisa sem explicação: sua face era de mosca! Aquilo não devia estar acontecendo, aquilo não podia estar acontecendo...

__ Foi um sonho! – Disse H. aliviado.

Sorridente como nunca, foi ver-se no espelho. Ficou louco, aterrorizado, ao perceber que aquilo não havia sido um sonho, mas sim um presságio.

Hermenêutica de "O Sonho"


Para os que pensam pouco (desculpem-me se fui arrogante, pois não era esta minha intenção): o texto usa o terror do cotidiano e da rotina, os pesadelos de mais um escravo do sistema - alienado à valores materiais e com a cegueira típica de quem absorve os medos e preconceitos da sociedade - para mostrar a fragilidade e a hipocrisia das relações humanas, além de como um cidadão normal reagiria às condições propostas pelo texto.

Descrevo a desesperança e a alienação do homem moderno, imerso num mundo que não consegue compreender.

Nesse texto, a ambigüidade onírica do meu peculiar universo e as situações do absurdo existencial chegam a limites insuspeitados. A ação desenvolve-se num clima de sonhos e pesadelos misturados a fatos corriqueiros, que compõem uma trama em que a irrealidade beira a loucura.


À Kafka, um de meus inspiradores. Um de meus mestres.