segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Um dia em um retrato na estante

Eu caminhava por entre a chuva, sem guarda-chuvas. Deixava-me atingir os pingos no peito, no rosto. As pessoas olhavam-me com olhos atônitos, e eu, indiferente, seguia em frente.
No curso em que ia e em que levava as idéias não pararia nunca, privei-me então do pensamento em benefício de minha saúde. Após alguns poucos minutos mais de caminhada, restringi-me às gotas de água quente do chuveiro da minha casa.
Enxuguei a cabeça e a cabeleira, deixando a toalha sobre uma cadeira. Vesti-me para ir à rua, não chovia mais. De todo, foi isso o que fiz enquanto em casa: enxuguei-me, banhei-me, enxuguei-me mais uma vez e vesti-me. “Para que me serviria a casa senão para isso?”, ri para mim mesmo, enquanto passava a chave duas vezes na fechadura, trancando assim a porta.
Depois, já na rua, olhava com os mesmo olhos cegos às pessoas que me rodeavam. No céu pendia uma nuvem, uma única nuvem, e todo o resto era só uma mistura de cores frias que arrebatava qualquer coração de poeta. Acompanhando esse céu, corria uma brisa leve, sem cor, mas também fria, e balançava meus cabelos de tal forma que eu precisava estar sempre com as mãos à cabeça para segurá-los.
Caminhei de casa até a praia, já que não era um caminho demasiado longo. Chegando lá sentei em um dos poucos bancos ainda inteiros. Não me importei com a madeira molhada, nem com a noite que já ia chegando: eu só queria estar ali. Cheguei a tempo de ver o espetáculo solar, e fiquei estupefato com a singularidade da beleza das produções naturais.
Ao mesmo tempo, como num “turismo no vácuo”, enroupei minha mente dos pensamentos que antes havia me privado. E toda a paisagem perdia sua fundamental forma, e seu equilíbrio se desfazia atrás dos meus olhos.
Depois de muito lá, desprendi-me da visão canônica dos dias: eu só via que o céu já estava escuro. Começou a chover, mais uma vez. Parado eu estava, parado eu fiquei. E como num déjà vu, apresentei-me novamente como um ser a ser observado, na sua mais ímpar disformidade e abstração.
Os olhos se afogaram em lágrimas seguindo-me até em casa. Passei a chave na fechadura, duas vezes. E abri a porta com um desespero incomum. Eu não estava com medo, eu precisava me esconder. De que? De quem? Eu precisava fugir dos olhos!
Entrei e fechei a porta com brutalidade. Dei uma risada e um suspiro. Uma vez em casa, em meu mundo, nada poderia me ameaçar.

domingo, 26 de outubro de 2008

Dias

E o grito do desesperado
É da boca pra dentro, pr’alma.
O que sai pra fora é o silêncio
De quem grita em pé de ouvido surdo.

A máscara esconde o rosto
Ou será que esconde o espírito?
Disfarce de camaleão em selva de concreto
É se fingir de morto em alguma lata de lixo.

Olhos vendados são vendidos
Pelos comerciantes na TV.
Toda a população compra
Só pra se privar de ver.

Chicotes são dados e chicotadas distribuídas
A população sente o couro, a carne ardida.
As feridas podem cicatrizar um dia
Mas as dores das marcas ainda serão sentidas.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Sistema judiciário

Ser condenado por se ser quem é
Sentindo o peso da própria existência
A esmagar o corpo magro
Em almofadas de concreto e aço.

Estar preso à sua própria liberdade
Num eterno ir e vir.
Brincando como se brincam as crianças
Vai e vem, vai-vem.
Balançando no balanço da vida
Indo e vindo
E não saindo do lugar.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Artistas da vida

A maquiagem não servia, de todo, para esconder as marcas com que a idade os havia presenteado; antes servia para que apagasse seus medos, suas preocupações e angústias. No palco, faziam o contrário de todo ator: deixavam finalmente de representar, para ser, por fim, quem realmente eram.
Debaixo das luzes dos holofotes fica-se cego, ou enxerga-se mais do que se deveria enxergar. Os julgamentos são extintos, a platéia finge não existir. ‘Ó, glamour do palco, não nos deixe!’, Rogam os artistas apaixonados, veneradores de um deus de madeira e pregos, cortina e corda, luz e sombra; um deus que permite àqueles que lho crêem a dor, o sofrimento e as mágoas; contudo, entrega-lhes de mãos estendidas, a cura para a doença, o perdão pelo crime e pelo pecado; deus que dá amor em vez de castigo, que é amigo em vez de inimigo, deus que não é pai, é irmão, esposa e marido.
Porém, o show tem hora para acabar, e os artistas fatigam-se; faltam-lhes as vozes e tremem-lhe as pernas. Uma pena, o martírio recomeçará; a rotina voltará a atacar e só lhes restarão os ensaios para que possam se libertar e parar de atuar.