quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Ratos

Era noite. A lua cheia resplandecia imponente. Os galhos das palmeiras, ao baterem uns nos outros, produziam um som que mais parecia um murmúrio de bebê. O clima era frio e aterrador, enquanto eu cobria-me apenas parcialmente com uma manta velha e que mal servia para aquecer meu corpo.
O vento uivava e alçava os meus cabelos ao ar, alvoroçando-os. Pra falar a verdade, com isso eu pouco me importava. Preocupava-me o saber de que teria de passar muito mais tempo naquele local do que eu mesmo imaginara antes.
Era um quintal vasto, rodeado por palmeiras e habitado por ninguém. Ao fundo, podia-se ver a quem eu esperava: a luz da lanterna vivia fraca vista daquela distância, mas era o suficiente para se saber que havia alguém ali, era o meu velho pai.
Eu o esperava colocar veneno para que morressem os ratos – quando naquele quintal havia ratos, estes migravam até minha casa. Verdadeiras pestes! -, e podia perceber a dificuldade com que realizava as tarefas mais simples.
Com certeza eu podia entender pelo o que passava meu pai. A velhice já o agredia ferozmente, e a ausência dos que já haviam ido o desolava como a fome às crianças.
Passaram-se algumas horas até que todos os pontos determinados estivessem armazenando devidamente uma deliciosa morte às pestes.
Feito o serviço, acompanhei com o olhar a chama da lanterna a oscilar. Meu pai vinha num andar tranqüilo, erguia vez ou outra a cabeça para olhar a lua.
O caminho era tão longo que meu pai demorou cerca de dez minutos para fazê-lo de volta – desconsiderando sua lentidão característica. Chegou então perto de mim e disse:
-Vamos...- e sem falar mais nada, seguiu reto, rumo para fora do quintal.
O andar de papai era vacilante, somente um cego não veria a fadiga e a doença alojadas naquele velho corpo. Tinha as marcas da idade na pele, mas conservava uma lucidez que era de se surpreender.
Finalmente chegamos à rua. Estava também escura, as luzes dos postes brilhavam fracas, como se sentissem-se tímidas perante o flutuante globo prateado nos céus.
O vento continuava a correr gelado; na penumbra, pouco se via, e o que se via, estava distorcido ou apenas se via parcialmente. As sombras das árvores eram assustadoras. Libertavam minha imaginação presa desde a infância, me levando a lugares sem limites, onde o aterrador é o normal e o medo é a mais forte das sensações.
Indiferente a tudo isso estava meu pai. Sem parar ele caminhava pelo caminho de casa, não reclamava sobre coisa alguma, mas seu sofrimento não precisava de palavras para ser traduzido. Ante tudo isso, aproximei-me de seu corpo e coloquei a mão no seu ombro. Em seguida, perguntei:
-Que há de errado, pai? - dei-lhe alguns tapinhas nas costas – Não se preocupe, as coisas hão de melhorar...
O velho continuava sem nada falar, mas durante a caminhada, percebi, em um momento em que a luz do luar bateu diretamente em seu rosto, uma lágrima a escorrer. Comovido, pensei ainda em falar mais alguma coisa, contudo, resolvi respeitar o silêncio de meu pai, e mantive-me também calado. E assim andamos até a frente de casa.
-Mulher! – Gritou ele, na seqüência, alguns murrinhos na porta, para que se apressasse a minha mãe.
Não demorou para que a porta se abrisse, porem, não era aquela velha e conhecida senhora farta quem segurava a maçaneta. Uma jovem, de olhos e cabelos negros como as noites mais escuras, fitava-me sem cessar, e disse numa pausa de respiração:
- Ela está lá dentro, não façam barulho.
À essa fala seguiu-se um repentino clima de preocupação e ansiedade, pois nenhum detalhe a mais foi dado, aquelas foram as únicas palavras pronunciadas, e, no entanto, valiam apenas o esforço gasto para dizê-las, porque, as palavras em si, nada disseram.
Adentramos a casa numa velocidade descomunal. Meu pai, que mesmo com a iluminação da casa continuava a segurar a alça da lanterna e a segurava cada vez mais forte, corria na frente, eu ia um pouco atrás.
A distância entre eu, meu pai e aquela garota, seria reduzida ao mínimo possível, na chegada à porta do quarto. Todos pararam, olharam uns para os outros, e continuaram parados, diante da porta fechada.
A garota tomou coragem antes de nós, que parecíamos estar petrificados pelo medo de algo ter acontecido com a única e mais amada mulher da casa. Os socos à porta foram dispensados, a jovem abriu-a com extrema cautela, afim de não fazer o menor barulho. Contudo, o menor barulho não feito foi o suficiente para fazer mamãe despertar. Pulou da cama de uma só vez, e pôs-se de pé à nossa frente, vestindo apenas uma camisola e tendo à mão um crucifixo, exclamou:
-Estou doente, vocês precisam ir! – pausou sua fala para respirar, mesmo estando antes deitada, ofegava – Aquele médico me diagnosticou! – E apontou para um senhor, que parecia querer se esconder e certamente o fazia, pois desde que entramos no quarto ainda não havíamos notado sua presença. Encontrava-se no canto mais escuro do quarto – apesar de o ser todo ele -, e se encolhia em uma pequena e velha cadeira de madeira, que parecia a todo instante que iria desmoronar-se sobre si, pelo peso daquele senhor extremamente gordo.
Estávamos no quarto eu, meu pai, minha mãe, e duas pessoas desconhecidas a mim, mas que mamãe e papai certamente conheciam, pois agiam com naturalidade – apesar do clima de tensão – na frente deles. Eu olhava vez ou outra para o rosto da jovem que abrira a porta da nossa casa para mim e papai, tinha uma feição preocupada, triste e solitária. Comecei a me sentir atraído pela melancolia ostentada por ela, e os olhares que eram lançados vez ou outra agora eram os únicos olhares que eu tinha, e se dirigiam aos seus olhos negros e pesados e a seu rosto pálido, que quase sumia na imensidão escura que se tornava ainda maior por seu cabelo ser tão escuro quanto o quarto.
Passei a ver naquela face, a lua, que era envolvida por toda a noite, salpicada por estrelas e adorada pelos poetas. Passei a ver naquela jovem uma coisa que inicialmente não vira, então a tomei pelos braços e levei-a até a cozinha. Meus pais, como se já soubessem o que aconteceria, não fizeram nada e nem se pronunciaram.
Naquele momento eu estava indiferente à vontade da garota, e, sem qualquer conversa, ao chegar na cozinha, beijei seus lábios que, de tão rubros, eu acreditava estarem pintados.
Ela sobressaltou-se e largou-me por um instante, olhou fundo em meus olhos e disse:
-Por que fez isso? Se o que quer é que eu sofra, já o faço o suficiente. – E como se não quisesse encerrada a conversa, abaixou a cabeça, colocou parte do cabelo atrás das orelhas e segurou a minha mão. Ficou calada.
A forma que encontrei para corresponder talvez a tenha agradado ainda mais do que eu esperava, também me mantive calado, apenas cruzei meus braços sobre ela e apertei-a contra o meu corpo, de forma que podia sentir em meu peito as batidas fortes de seu coração. Ficamos ali, parados, enrolados um no outro. Sua cabeça descansava sobre meu ombro e a minha roçava levemente seu rosto, como mais tarde viriam a fazer minhas mãos.
A noite foi-se embora e levou com ela a garota.
Fiquei durante toda a madrugada deitado no sofá, de pernas pro alto e pensamentos nos céus. Àquela altura o médico também já deveria ter ido embora.
“Mas que senhor gordo...”, Falei pra mim mesmo e sorri por alguns instantes. Dormi, e passei com a madrugada.

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